Obra Reunida

Othoniel Menezes: um parnasiano na terra Natal
— Tarcísio Gurgel* —
Do poeta natalense Othoniel Menezes pode-se dizer com segurança que foi, na boa feição parnasiana, um obcecado pela forma. Mas, tal afirmativa não dá conta da complexa posição que o poeta ocupa na literatura local. Porque, à boa maneira de Sísifo, personagem mitológica que teima em levar ao topo de uma montanha – até a eternidade – uma enorme pedra, que rolando de volta obriga-o a um eterno recomeço, assim também ele, adepto do formalismo que consagrou e revelou os excessos estilísticos de um Alberto de Oliveira, tentará, até o final da vida uma paradoxal aproximação com a simplicidade na criação poética. Detentor de forte personalidade, e de um indiscutível talento para a poesia, parecia disso ter, desde cedo, uma clara consciência.1 Não é, aliás, difícil comprová-lo, a julgar pelo tom atrevido com que se dirige à própria Glória, já no soneto de abertura de Gérmen, livro de estréia, em 1918:
Glória: para o teu seio enfim, levanto o condoreiro vôo do meu sonho.2
Henrique Castriciano abençoa essa estréia, com um curioso prefácio em que, sem prejuízo do elogio feito ao jovem poeta, propõe-lhe curiosamente nova régua, novo compasso, insinuando que a visão social e o nacionalismo – que, afinal, povoavam corações e mentes no ano em que se encerra a Primeira Guerra Mundial – deveria tomar o lugar do interesse mitológico que o jovem lírico revelava. Mas é claro que o consagrado autor de Vibrações percebeu que, aquele, se tratava de um livro especial e até surpreendente para um rapaz de apenas 23 anos. E, a julgar procedente a informação editorial contida no seguinte, Jardim tropical mais surpreendente ainda fora a tiragem, de 3.000 exemplares, esgotados cinco anos depois.3 Não pode existir dúvida de que aquele rapaz de olhar penetrante, cabelos cuidadosamente penteados, bigodinho ostensivo, trajando no rigor da moda, tinha consciência de que poderia preencher aquela espécie de vácuo surgido com o desaparecimento de Auta de Souza (1901), Açucena (1907), Segundo Wanderley (1909), Gothardo Neto (1911) e Itajubá (1912) todos importantes poetas da Belle Époque natalense. Talento é que não lhe faltava. E o espaço estava disponível, como se vê, porque o próprio Castriciano, que lança <strongvibrações< strong=”” style=”box-sizing: inherit;”>, em 1934 não voltaria a publicar livros. É bem verdade que a bela e talentosa Palmyra Wanderley também se lança neste mesmo ano com Esmeraldas e, já admirada pela sua intensa atividade jornalística e teatral, obtém um merecido reconhecimento. Porém é o autor de Gérmen que, por mérito próprio e pelas circunstâncias apontadas, se tornará o nosso principal poeta, na década. E uma aura bastante intensa envolverá o seu nome até os nossos dias.
Culto, declaradamente filiado a uma escola em que, metalingüisticamente, um dos leitmotiv era o próprio trabalho de construção do poema, ele se tornará, com sua produção poética um estimulante desafio, tamanho o leque de aspectos que em sua obra merecem atenção. Por isto me proponho a partir deste ponto o excitante desafio de demonstrar como, na opulência da forma de Othoniel Menezes se esconde uma tenaz busca de simplicidade num parnasiano que estaria muito mais próximo de Itajubá – de resto o seu poeta mais querido – que de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, provavelmente os mais admirados.
Vocábulos raros, mitologia, poemas Comecemos por considerar uma seara riquíssima para quem trabalha, por exemplo, com análise morfológica: a grandiloqüência traduzida em seu discurso lírico por imagens apoiadas em vocábulos de espantosa raridade. Tal procedimento, fruto de uma linhagem retórica que estimulou a nossa irreprimível atração pelo torneio vocabular e imagético – herança do púlpito barroco, a que não ficaram imunes as poéticas vigentes nos séculos XVIII, XIX, começos do XX – ressoa até na, permitam-me o superlativo pouco original, estranhíssima poesia de Augusto dos Anjos. Um culto no espaço de iletrados, por vezes Othoniel Menezes parece divertir-se com o uso de vocábulos como adyto, báratro, alcaceta, infrene, yatagan, citharedo, ultriz, víride, ortivo, tredo, patacho, louçã, cyprio, brunido, virtualha, colhidos nos primeiros poemas de seu livro de estréia procedimento que se reduziria ao essencial em seu último livro publicado em vida, A canção damontanha, de 1955. Outro caminho certamente fértil pra um estudo dessa exuberante poética e da já mencionada aproximação com Itajubá é buscar entender a recorrência de Othoniel ao uso de signos retirados da mitologia grega. É necessário desde logo ressaltar que nenhum outro poeta local utilizou-se tanto e tão eficazmente de um acervo mitológico assim. A professora Águeda Zerôncio6 já assinalara este aspecto, acrescido da clara opção do poeta por aqueles heróis mitológicos (Ícaro, Tântalo, Sísifo, as Danaides) que têm suas existências martirizadas pela obrigação de realizarem tarefas que jamais se completarão. Importa finalmente considerar outro aspecto que está a merecer a atenção da crítica: o zelo paternal que o poeta revela por cada novo livro que entrega ao leitor, cercando-o de cuidados, explicações, epígrafes e calorosas dedicatórias, onde repontam semideuses parnasianos federais e, no plano doméstico, tendo como alvo principal a grande figura do poeta Henrique Castriciano, a quem ele classificará em Jardim tropical de “O primeiro na minha terra”.7 Tudo contribui, como se vê, para tornar maior o desafio crítico de explicar-lhe a estranha tensão de sendo em essência um romântico, obrigar-se a, diariamente, burilar a pedra do lirismo a ser conduzida em fatigantes jornadas na direção da glória. Ainda mais que, tendo deixado inéditos e esparsos, a tarefa de reunir-lhe a obra, certamente não está concluída, continuando a revelar-lhe novas facetas.8
No parnaso, mas não completamente
Publicado o seu segundo livro, Jardim tropical, Othoniel Menezes já não consegue disfarçar o descontrole de uma inspiração que se traduz na mais pura emoção itajubalina. Ainda uma vez a predominância é de sonetos, mas, as seções em que ele divide os núcleos poemáticos – todos nomeados com a exuberância da flora – e a própria escolha dos temas, são denunciadores de que o jovem, agora travando contato com uma realidade cheia de desafios, voltará os olhos para a realidade social, senão com a intensidade nacionalista sugerida por Castriciano, ao menos com a simplicidade solar do nosso poeta romântico mais amado. Não por uma mera coincidência, o poema “Serenata do pescador”, que o povo rebatizaria “Praieira” – no qual a evocação saudosa dá-se como uma anáfora, alternadamente, ao longo de todo o texto lírico – se tornará emblemático da sua poesia. Igualmente não terá sido uma mera coincidência que o seu autor, pressuroso, num procedimento tipicamente seu, registrasse em nota de rodapé os riscos de uma popularidade que o atemorizava. A esse respeito, já havíamos considerado em nota à p. 67 de Informação da Literatura Potiguar que, entre algumas anedotas que cercam o poeta com o seu forte temperamento, havia aquela que Jayme Wanderley contava gostosamente, de ele haver despedido uma empregada doméstica por haver cantado a pobre mulher, de forma errada, verso de sua autoria já popularizado pela via da modinha. Também assinalamos que ele próprio, Othoniel, revelara-se assustado com a enorme popularidade que “Serenata do pescador”9 adquiriu, identicamente, cantado por toda Natal, o que o levou a fazer uma curiosa observação, em nota estampada à p. 51 de Jardim tropical: Sei quanto é modesto o valor artístico destes versos. Feitos às pressas, para serem recitados a pescadores, achou-os o inspirado musicista Eduardo de Medeiros, capazes de ser amparados pelo seu talento, valorizando-os com lindíssimo fado que a cidade repete nas serenatas ou nos salões da aristocracia, de bairro a bairro. Por isso, e para satisfazer a pedidos muito gentis que me orgulham e me confortam, publico no livro a minha “Praieira”, que me tem dado muitas vezes, noite alta, enquanto um violão soluça na rua solitária, a ilusão efêmera e perigosa da popularidade. E arremata com uma advertência que não poderia ser mais característica de suas ansiedades parnasianas: Vá ela, a pobre “Praieira”, e que agora se ponha a salvo dos assassínios com que a têm supliciado. O grifo é do próprio Othoniel.
O ensaio sobre Itajubá
Ainda não publicado em livro, há um texto do poeta de Gérmen no qual sobressai exemplarmente a tensão entre o zelo parnasiano e a sua admiração por Ferreira Itajubá. E é escrevendo em prosa, talvez até mais que em sua poesia, que o poeta de quem estamos tratando ressalta ainda mais o sisífico conflito que o acompanhou por quase toda a vida. Trata-se de uma série de artigos intitulada com o próprio nome do poeta romântico (e acompanhada de uma observação “Trecho de um ensaio”, o que insinua ser apenas parte de um texto maior) que fez publicar, em 1947, no jornal da capital O Democrata.10 Há, certamente, nos comentários produzidos sobre o nosso principal romântico elementos para reforçar-se a metáfora do sabiá no parnaso com que costumamos nos referir ao poeta que vimos estudando. É que partindo de um amargo comentário sobre o drama de ser intelectual no mesquinho espaço da província, o poeta parnasiano vai construindo o cenário em que se move o ídolo romântico em sua condição de quase marginal, para deterse, ao final, em dois aspectos mais demoradamente: a linguagem do poeta de Terra Natal e as circunstâncias misteriosas em que ocorre a sua morte. Sinteticamente é essa a estrutura do ensaio. E seria simples entendê-lo, não fosse o seu autor Othoniel Menezes; não fosse o objeto do seu estudo, o poeta que mais amou: Ferreira Itajubá.11 É de se ressaltar a indignação do poeta de Jardim tropical para uma questão sobre a qual apenas uns poucos devem, hoje em dia, estar informados: a querela que durante bom tempo dominou as discussões sobre a publicação póstuma da obra de Itajubá. À boca pequena, os intelectuais da cidade comentavam que alguém poderia ter tentado “melhorar” o rude estilo do autor de “Versos de abril”.12 Corajoso como era, sempre pronto a encarar injustiças – e por isto, tendo que pagar tributo à mesquinhez da vida prática, não poderia alhear-se a essa polêmica. E, na parte do ensaio denominada “Última flor do lácio inculta e bela”, após transcrever o soneto “Destino”, onde o exilado/eleito potiguar discorre simbolicamente sobre a existência, comenta: Não possuímos Harmonias do Norte, livro através de cujo texto original, aliás – sabemo-lo todos – andou mão estranha, numa fúria de heresia necrófoba, emendando, substituindo, desnaturando, de acordo com o maldito “espírito gramatical”, muitas expressões, muitas imagens, versos inteiros que, na forma daí por diante postos, muito perderam do virginal, saboroso, inimitável pitoresco da primitiva publicação (Revista da ANRL, cit.). Hoje tem-se como certo que algumas modificações chegaram a ser feitas, porém não tantas que não pudessem ser aproximadas da versão original, já anunciada por Itajubá anteriormente à publicação deTerra Natal. Mantendo o título de Harmonias do Norte, Henrique Castriciano, fez com que o reunissem ao outro, integrando- o, definitivamente ao volume Poesias Completas, em 1927, no mesmo ano em que Jorge Fernandes13 lançaria o seu Livro de Poemas. Mas é preciso destacar que o zelo e a admiração do ensaísta não escondem um certo maniqueísmo dominante na vida literária natalense que sempre sugeriu estarem: de um lado a elite oligárquica com seus intelectuais cheios de má vontade para com o poeta Ferreira Itajubá e do outro ele próprio, exposto, com toda a sua fragilidade. Pois é ele próprio que, sem qualquer constrangimento, chega a homenagear com um soneto o governador Alberto Maranhão numa comemoração de aniversário do oligarca, no próprio palácio, em 03.10.1911. Aliás, a empolgação revelada é tamanha que o poeta de “Um marujo parte” parecia haver tomando de empréstimo o estro condoreiro de Segundo Wanderley. Considerando- se a tonitruância dos dois últimos versos: “Pirilampo imortal das Ribas potiguares;/ trigo do pão da luz, Glória da minha terra!” podemos imaginar o fascínio que o mesmo há de ter causado no quase menino Othoniel já atento à produção lírica da terra. Como quer que seja, apenas uma admiração assim, capaz de projetar um desejo inconsciente de tornar-se idêntico à pessoa admirada, justificaria ensaio tão veemente. Aliás, se tratamos de temperamento, é possível dizer-se que, afastado o lado boêmio de Ferreira Itajubá, não poucos aspectos os aproximavam. Porque Othoniel Menezes foi igualmente, à sua maneira, um displaced, anjo torto, um inadaptado à hipócrita mesmice provinciana.14 Este sentir- se obrigado a tomar as dores por um idêntico é que dá o tom do ensaio de que vimos falando. Embora em três dos oito artigos que compõem “Ferreira Itajubá” ele defenda a idéia de que o sentimento tende, considerado o talento de quem o revela – no caso Itajubá – a sobrepujar o léxico, chegando a se valer de um conceito de Álvaro Lins, “incontinência verbal”, com o qual justifica aspectos da poesia de Augusto Frederico Schmidt15 Othoniel acaba por lamentar que o poeta de “Versos de abril” não conte “[…] com um instrumento de expressão à altura do seu extraordinário talento poético” o que o teria projetado “[…] no cenário nacional, dominado, literariamente, pelos perfeccionistas da geração de Bilac”. Na seqüência, comenta, desolado, que o mesmo Castriciano teria levado até Vicente de Carvalho alguns poemas de Itajubá, tendo o poeta santista falado mal dos alexandrinos do romântico natalense… Mas, é sem dúvida, no artigo, intitulado de forma dessacralizadora “Ele era o senhor do sábado”, em que estabelece uma analogia entre a poesia do alegre perdulário da existência – o poeta e cidadão Manoel Virgílio Ferreira, dito Itajubá – e os acontecimentos taumatúrgicos descritos por Mateus, onde fica clara e de modo definitivo, a admiração de Othoniel Menezes pelo poeta romântico. E se lemos numa camada mais profunda, as trajetórias e a poética de um e de outro, iremos detectar aquele desejo de impossível realização, aquela espécie de consciência da danação sisífica que perseguiu o autor de Jardim tropical. Considere o leitor os trechos seguintes: Cáspite! nenhum de nós outros, desde Lourival Açucena, irrequieto Anacreonte dos suaves convívios pelos numerosos caramanchéis do Barro Vermelho e da Passagem, nos princípios deste século, velho fauno latinista, canário e garnizé da cabocla Porangaba, até esse superestesiado, paradoxal, poliédrico Esmeraldo Siqueira, dispensando no batepapo dos “cafés” a joalharia de mil e uma noites de um estro celinesco e uma formidável cultura literária – nenhum de nós, reconheçamos sem falsas modéstias, desencantou coisas mais lindas. […] Ainda, como acontecia ao tempo dos prodígios, com o testemunho visual de S. Mateus, Cap. 12, ele era senhor do sábado, fazendo milagres – transformando em vinho generoso a água-de-cheiro de velhos temas puídos por algumas gerações de lamartinistas lamurientos, semeando trigo onde havia beldroega e mata-pasto; reproduzindo, sobre o nosso lirismo enfaixado nos linhos pútridos do espólio europeu,a ressurreição de Lázaro – acima da legalidade restritiva e formalística do Sinédrio… Ei-lo, portanto, que, falando de Itajubá, sugere estar falando de si mesmo, ainda que o fizesse às avessas. Incompreendido, viria também a se exilar, já não mais como um romântico – pois nem a idade-padrão teria mais, para justificar qualquer metáfora – mas, como um magoado com as agruras, absurdos sofrimentos, onde não faltou, a omissão dos amigos poderosos segundo insinua (fazendo suas as palavras de Newton Navarro) o irmão Francisco Menezes.16 Omissão que, diga-se de passagem, o próprio Othoniel Menezes não deixa de assinalar no episódio da morte de Itajubá, como o faz no dramático artigo com que encerra o ensaio de que falamos aqui.
Sertão medido a emoções
Embora pertencendo a outra geração, Othoniel Menezes pode ser considerado o último dos grandes poetas de um grupo que pontificou entre o final do século XIX e o início do XX, na capital do Rio Grande do Norte. A diferença de idade não o impediria de iniciar-se na poesia um quase menino, de tal maneira que, mesmo quando estréia em livro, apenas o bigode ostensivo e o duro olhar afrontam a indisfarçável juventude, como já ficou assinalado, na foto clássica que ilustra o seu livro de estréia. Naquele cenário de festejados líricos certamente admira que o rapaz nascido em 1895 tenha a responsabilidade de manter a tradição ao lançar o seu primeiro livro com apenas 23 anos. E ele a mantém. E até a expande, com sua popularidade. Sem pretender exagerar na ênfase biográfica, considero pertinente lembrar: quando o poeta Ferreira Itajubá morre a sua morte misteriosa de indigente, o poeta de “Serenata do pescador” encontra- se em plena adolescência. E o menino contestador, logo um cultor do lirismo parnasiano, estudioso de mitologia, amigo admirado do líder sindicalista Café Filho, depois redator de A Liberdade, órgão oficial da transitória administração comunista em 1935, zelosamente reservara um lugar no seu panteon particular para aquele romântico que rompeu todos os diques do preconceito na sociedade de então para ver triunfar a sua rude poesia. Pois também Itajubá, informa-nos o seu primeiro biógrafo, José Bezerra Gomes, agitou passeatas em manifestações lideradas pela Liga Artístico-Operária Norte-Rio-Grandense. Não seria difícil, assim, perceber na vida e na poesia daquele estreante e em seus livros subseqüentes (nos quais repontam, por vezes, heróis mitológicos malsucedidos), a crescente admiração. Mas, a fama de Bilac, o desafio de “esculpir” idéias líricas, preferentemente numa forma fixa – o soneto – e uma certa ludicidade na construção poética acabaram fazendo do jovem poeta natalense um admirador incondicional dos modos e moldes parnasianos. E ele quase fica para sempre parnasiano, assumindo de modo definitivo, embora não convincente, a condição daquele que sabia “fazer versos contadinhos nos dedos”, como referiu Jorge Fernandes, ao falar genericamente da escola, no poema de abertura da série “Meu Poema Parnasiano”. Ninguém notou igualmente que, na perspectiva de que as escolas se sucedem sempre com a presunção de que a mais recente decreta o esgotamento da anterior, ele estaria dando um possível passo atrás ao lançar, em 1923 o seu Jardim tropical. Trata-se de um livro dividido em núcleos que semelham canteiros do grande jardim que, aliás, tem como um dos primeiros poemas aquele intitulado “Pindorama”, em que o poeta cede abertamente à tentação romântica, ecoando a citada admiração itajubalina. Por uma caprichosa coincidência consolidaria sua aura, agora de modo definitivo, com um poema que o ídolo provavelmente assinaria: “Serenata do Pescador”. Quase trinta anos após haver publicado Jardim tropical, (podendo- se atribuir tal demora em voltar ao livro à sua vida atribulada em meio à agitação do período: revolução, interventorias, insurreição comunista, afastamento de Natal, Segunda Guerra Mundial) o poeta lança outro livro surpreendente: Sertão de espinho e de flor. O resultado é, como em quase tudo na sua vida, exemplo da mais pura ousadia. Trata-se de um livro híbrido, por conter ao mesmo tempo poesia e exercício de etnografia, não sendo exagero afirmar-se que, o poeta não se limitou a revelar sua emoção, falando de uma terra que viu com olhos de criança. Cuidou igualmente de traduzir para os leitores menos avisados, em notas de grande riqueza, o significado de tal palavra, tal situação, tal costume, tal alimento, etc. Ousadia maior não poderia haver: tido e havido nos meios literários como um poeta de cultura refinada, Othoniel Menezes produz em Sertão de espinho e de flor uma paráfrase da fala sertaneja, que ganha corpo através de sextilhas septissilábicas, conforme registra Luis da Câmara Cascudo no texto “Ecce Homo”, com que apresenta o livro. Significa dizer: aquele eu-lírico que primava pelo verso resultante de um trabalho idêntico ao de escultor ou ourives, assume agora corajosamente o tom monótono da cantoria agreste e bela com que os poetas populares fertilizam o sentimento sertanejo. Obviamente, um desafio assim, só poderia ser encarado por um poeta assim, tão corajoso. Sabendo que corria riscos, ele habilmente muniu-se de inúmeras citações, fazendo quase todos os dezesseis poemas serem precedidos de epígrafes de Euclides da Cunha. Esta escolha tem, digamos, um peso certamente simbólico: o autor de Os Sertões era igualmente talentoso e contraditório, tanto que para produzir sua obra-prima (também desafio interminável para crítica e leitores) obrigou-se a refazer sua própria visão de intelectual republicano. E o seu trabalho magistral resultou numa obra compósita: relato de guerra, ficção, história, tratado científico, etc. Portanto, não sendo por definição um poeta popular, Othoniel Menezes enfrentará um problema logo visível ao leitor arguto que é, claramente, a já sabida tentação romântica indisfarçável em certos versos. Mas aqui é possível assinalar um aspecto que o favorece: ao cantador, ao poeta popular, fascina a linguagem empolada, o tom gongórico, a hipertrofia utilizada para descrever certas situações. E isso decorre, não chega a ser nenhum segredo, do diálogo permanente, do intercâmbio que se verifica entre a cultura popular e a outra, de natureza erudita. E mesmo Euclides, também ele, valeu-se da hipérbole, da antítese, do oximoro. Constatações essas que apontam para nossa tendência ibérica a um certo barroquismo lingüístico que, afinal, diz muito bem sobre quem somos. De modo que vemos desfilar nos dezesseis poemas de Sertão de espinho e de flor um sertão mítico que, feito de antíteses, é céu e inferno, grandeza e miséria, amargo e doce, estiagem e inverno; sertão que se eterniza – a despeito de contágios civilizatórios (hoje se dirá: globalizantes) – em criadores como José de Alencar, Cego Oliveira, Graciliano, Guimarães Rosa, Juarez Barroso, Francisco C. Dantas, Oswaldo Lamartine, Ariano Suassuna, Paulo Balá e Patativa do Assaré. Quanto à parte do livro que trata do sertão como objeto de interesse propriamente etnográfico, nas incontáveis notas que se seguem aos poemas, Othoniel Menezes revela uma comovente postura intelectual. À sua experiência empírica, recolhida da memória infantil, acrescenta à de autoridade em assuntos sertanejos da estatura de Gustavo Barroso, José Américo de Almeida, Câmara Cascudo, Leonardo Mota, tantos outros. E o que é mais: às fontes vivas, interlocutores da região, verdadeiros narradores das coisas do sertão, como o notável fazendeiro de Acari, Cipriano Bezerra Galvão, zeloso guardador da memória, antepassado de estudiosos competentes como os citados Oswaldo Lamartine e Paulo Balá. O resultado é um conjunto inestimável de informações sobre o Sertão. Sertão de cuja medida se tem idéia pela emoção do seu autor.
A escalada da montanha
O ponto ideal da sua poesia, Othoniel Menezes atinge com A canção da montanha o último livro publicado em vida. Ele próprio, como vimos, aparentado daqueles heróis míticos cujo destino é cumprir uma tarefa infindável e frustrante, embora tendo acumulado tantos revezes ao longo da existência, parece compadecido de si, produzindo agora versos com notável equilíbrio. E tendo estreado quando a Primeira Guerra Mundial ainda acontecia e a ele, menino, parecia interessar apenas a escalada da imortalidade, agora como um humanista que não disfarça as cãs e deplora a estupidez, identifica ecos da Segunda Guerra acabada na década anterior, nos lamentáveis acontecimentos de uma sociedade movida a hipocrisia que assiste agora, passivamente, o surgimento da Guerra Fria. Impressiona, pela assumida mudança de atitude poética e a crítica à omissão da sociedade, o tom do soneto de abertura “Clarim”, que assemelhando paradoxalmente pela diferença de propósitos daquele “Ícaro”, que abria Gérmen, parece conter um propósito – admitir o fechamento de um ciclo: Pela janela aberta para o mundo, onde a vida dos povos tumultua, arremessei o escopro florentino com que talhava o molde dos sonetos. Que valem decassílabos à lua, quando tudo, aqui mesmo, anseia e sofre, e o destino das coisas mais sagradas quem mais armas possui, guarda no cofre? Bardo! Pendura a cítara dolente em que choraste apenas o teu drama! vão teus filhos bem cedo à barricada! Antes porém que os tome a vaga ardente, cai, cantando no círculo de chamas, entre rimas, blasfêmias e granadas! Trata-se, portanto, de mais um surpreendente livro do poeta de “Sugestão da luz”. Mas não se trata de um livro que tem por bandeira o pacifismo. E é por certo em poemas em que ele próprio se insinua, amargurado por derrotas sucessivas, porém humanizado pela maturidade que os anos propiciam a certas pessoas, que a voz do poeta tem a força de uma autêntica confissão como no trecho que se segue, do belo poema que dedicou à grande amiga e grande poetisa que foi Myriam Coeli: Como no itinerário de outros homens vacilantes e falíveis, / Muitas coisas ficaram sem corpo no meu destino. / Muitas atitudes imaterializadas na minha culposa displicência / muitos gestos felizes / morreram sem expressão na estática dos silêncios infecundos. Adequadamente intitulado “Confiteor”, o poema apregoa a sua clara expectativa de que, ao fim e ao cabo, “[…] a todos os viventes/ os inconscientes e os conscientes – / chegue a verdadeira mensagem que à Harmonia Universal/ deve toda perfeita inteligência.” Trata-se de fazer, em vários momentos do livro, uma espécie de balanço existencial, em que evoca amigos, ou os homenageia dedicando-lhes poemas, deixando a inspiração fluir mais livremente, sem preocupação com as cafuas léxicas de outrora. Trata-se, portanto, de um livro deliberadamente novo em seu discurso poético e o que, paradoxalmente o favorece, é ainda a coragem – restos, talvez, da impetuosidade do esgrimista da juventude – que o revela capaz de tratar de temas imprevistos e dolorosos como falar da mãe suicida num poema batizado genialmente de “Berceuse”, numa magnífica inversão do olhar infantil agora resgatado. Por isso afirmamos, sem qualquer preocupação de esconder um evidente sentimento de latinidade no já citado Informação da Literatura Potiguar (p. 68). Se se pudesse tentar uma síntese dessa obra complexa, poderíamos dizer que a escalada sugerida naquele seu soneto de estréia, acabou se dando em sentido diverso. Isto é: no atingimento de uma simplicidade que, embora insinuada no regionalista Sertão de espinho e de flor, só ocorrerá de fato em seu último livro publicado em vida: A canção da montanha. Aqui, um Othoniel despreocupado com as rígidas imposições da forma parnasiana, mostra-se mais autêntico. Vale-se da ironia abrindo mão da causticidade, apregoa lições de profundo humanismo, desenvolve certa ontologia, considerando a sua própria maturidade, mesmo que as cicatrizes estejam visíveis. Alguns dos melhores momentos da poesia potiguar encontramse em poemas de A canção da montanha justamente porque o poeta, em paz com o seu romantismo, e dominando a forma sem excesso, sem receio de expandir-se, liricamente, em versos por vezes bastante longos, à Whitman – podendo dosar tal expansão quando julgou necessário – não se intimidou sequer quando se sentiu completamente dominado por certo sentimento latino (bolero ou tango, por que envergonhar-se de estar ao sul da América?), na canção de ninar cuja belíssimo título, “Berceuse”, por si só já causaria admiração, feito para a mãe suicida. Tinha um roupão encarnado estampado com ramagens, e tocava violão. Uma letrinha miúda que há tempo vi já desbotada no vetusto livro de orações da minha prima Conceição, – com flores secas, pétalas fanadas, um pobre aroma de ilusões perdidas […] Considerando-se panoramicamente – tal como agora é possível ver com a sua obra reunida pelo filho Laélio – podemos afirmar que este poeta, que à maneira do ídolo Itajubá também terminou seus dias no Rio de Janeiro, e que, ao longo da vida enfrentou incompreensões que o aproximaram ainda mais do autor de Terra Natal (especialmente na sua maturidade, quando teve que tentar retomar sua vida praticamente do zero, numa cidade que não era sua, com amigos que julgava ter), deixou uma obra à altura dos que o precederam. Mas, curiosamente, o seu aspecto mais importante decorre da tensão que leva a essa incompletude, ou seja, do fato de que ele não conseguiu jamais superar a evidência de se saber um romântico no espaço do Parnaso.
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* Escritor, doutor em Literatura Comparada, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Autor, entre outros, do livro Informação da Literatura Potiguar (2001).